Muito esforço se fez em Brasília, diante da aprovação de um processo de impeachment sem crime, para que o governo posterior ao de Dilma Rousseff mantivesse a aparência de Estado de Direito - isto é, um em que a lei valha para todos, e em que as forças do Estado tenham limites bem delineados. Passados oito meses daquele momento, porém, os sinais se acumularam às montanhas no sentido contrário. A lista de aberrações jurídicas no Brasil cresceu a um ponto em que a própria sobrevivência da lei precisa entrar em debate.
As fotos abaixo são grandes sinais vermelhos. Na da esquerda, tirada nesta quarta-feira (26), o policial aponta a arma na cabeça de uma jovem estudante para intimidá-la, na certeza de que não sofrerá nenhuma punição pelo gesto grotesco. O episódio lamentável aconteceu na ocupação da escola Irene Stonoga, em Chapecó/SC, apenas horas depois de outros policiais invadirem uma escola em Miracema/TO para remover os estudantes, mesmo sem qualquer tipo de mandado judicial ou presença do Conselho Tutelar. Como cereja do bolo, as crianças, quase todas menores de idade, seguiram algemadas para a delegacia.
Esses indicadores fúnebres de abuso de autoridade têm se tornado epidêmicos entre as forças de segurança do governo, seja pelo aumento dramático no número de assassinatos por PMs em atividade em São Paulo, seja pela organização de milícias paramilitares com capacidade política no Rio de Janeiro, seja pela repressão violenta aos professores e estudantes no Paraná. Em comum, todos se apoiam na ideia de que aqueles que combatem os crimes estão liberados para cometê-los.
O quadro, porém, não está limitado às forças de segurança. Muito pelo contrário.
Juízes fora-da-lei
Ainda que a PM seja o braço visível dessa interpretação cada vez mais opressora da lei, a violência descontrolada é apenas o sintoma de um mal-estar maior, que agora atinge todos os espaços jurídicos brasileiros. Não há hoje, no Brasil, um único espaço do Judiciário que não esteja sujeito a possíveis abusos da lei. Entre interpretações distorcidas de leis já existentes, investigações conduzidas com resultados pré-estabelecidos e violações contra os direitos dos investigados, os próprios juízes e promotores estão fazendo o trabalho de desconstruir a Constituição Federal.
Nenhum caso é mais evidente, neste sentido, que o do ex-presidente Lula. Investigado há pelo menos 40 anos, Lula sempre se apoiou nas garantias do direito de defesa para atuar politicamente. Esteve sob a mira de detetives e promotores desde a década de 70, mas somente em 2016 sentiu a necessidade de pedir auxílio internacional em sua defesa.
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Uma análise dos motivos revelam um cenário assustador: desde sua condução coercitiva, já teve que enfrentar dezenas de liminares roubando-lhe os direitos políticos, grampos telefônicos em suas as conversas com advogados e até com a Presidência da República, promotores criando teorias conspiratórias para enfiá-lo em casos que não lhe dizem respeito, assédios judiciais contra seus familiares e, por cima disso, um juiz com uma promessa de incriminá-lo. A ausência de provas materiais parece não ter importância.
Esse descompromisso com a lei já afeta uma parte relevante dos juízes, inclusive no STF. A corte máxima brasileira, desde o início da crise política, vem tomando decisões que fundamentalmente sabotam as garantias da Constituição de 88, a começar pela própria inoperância durante a votação do impeachment. Diante de um episódio de injustiça declarada, preferiram negociar um aumento salarial com os golpistas, e daí partiram para outros descalabros jurídicos. Em oito meses, não apenas abriram a porteira para o cumprimento de penas depois na segunda instância, como também autorizaram os forças policiais a conduzirem invasões domiciliares a qualquer momento, sem mandado. Agregados à permissão anterior de condenações sem provas (o chamado “Domínio do Fato”), os ministros criaram um ambiente em que os advogados de defesa dependem mais da simpatia dos juízes do que da forma da lei.
O ministro Celso de Mello, em um dos votos derrotados, foi enfático: “Quantos princípios proclamados pela autoridade superior da Constituição da República precisarão ser sacrificados para justificar a decisão desta Suprema Corte?”.
Caça às bruxas
Essa vontade de estar acima da lei acaba se traduzindo nas ações de atores menores do Judiciário. Tomemos como exemplo o caso do advogado Marino Icarahy, que foi condenado no Rio de Janeiro por sua atuação na defesa de um manifestante. Marino foi condenado por injúria e difamação depois de ser processado pelo juiz Flavio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. O crime? Um gesto de punho levantado em apoio ao réu, que passou mais de três horas dando depoimento. Marino não foi o único - além dele, mais seis pessoas enfrentaram o mesmo processo.
Marino recorre da decisão, que o condenou a onze meses e dez dias de prisão. Se perder novamente na segunda instância - um fato provável, dado o corporativismo virulento entre juízes -, terá que recorrer à terceira instância já de dentro da cadeia, com chance de cumpri-la por inteiro antes de ter o caso apreciado.
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Em todos os estados, parte dos juízes parece adotar o exemplo de Sergio Moro e Gilmar Mendes. Em Porto Alegre, o juiz Niwton Carpes, declarado opositor de Dilma, usou seus poderes durante o primeiro turno das Eleições para impedir a imprensa de acompanhá-la à urna. Titular da 160ª zona eleitoral da capital gaúcha, ele usou seu poder para colocar a Brigada Militar na entrada da escola em que aconteceria o fato. O resultado foi um episódio lamentável de violência física contra a imprensa.
A PM não demorou a perceber que poderia contar com a cumplicidade desses juízes para tocar o terror na população. O coletivo Ponte Jornalismo foi vítima disso no último dia 12: enquanto filmavam um protesto de secundaristas na zona oeste de São Paulo, foram atacados por PMs sem identificação, que diziam para “pararem com a mania de filma polícia”. Apesar de não reagirem, foram obrigados a apagar todo o material registrado e conduzidos à 91ª DP à força. No caminho, ouviram ameaças: “O que estiver vinculado à escola e à polícia pode apagar, senão vou apreender sua câmera”.
Não é coincidência que esse caos jurídico aconteça sob as graças de Alexandre de Moraes, ministro da Justiça de Michel Temer. Trata-se, afinal, do homem responsável pelo pior histórico de repressão policial do estado de São Paulo. Enquanto foi secretário de Segurança de Alckmin, Moraes cumpriu uma dupla façanha: transformou a PM paulista em polícia política do PSDB e aumentou a taxa de assassinatos da corporação em 70%. Sob sua determinação, a mesma PM que adotou táticas de repressão condenadas pela ONU permitiu aos manifestantes pró-impeachment que ocupassem a Av. Paulista por três dias.
Entre tantos episódios, o desvirtuamento do Judiciário atinge níveis irrefutáveis ao final de 2016. Com a cumplicidade da imprensa, que faz a outra metade desse serviço, transformou-se em um espaço de caça às bruxas, com consequências imprevisíveis daqui para frente. Ao esconder suas flagrantes falhas sob o manto do sensacionalismo televisivo, os juízes brasileiros podem se sentir abraçados, mas convém lembrar que a mesma lei que quebram contra seus desafetos hoje será quebrada contra eles amanhã.
É uma questão de tempo.
Por Renato Bazan
FONTE: Portal CTB
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